“Confio no senhor, Juiz Falcone, como confio no Vice-Chefe da Polícia, Gianni De Gennaro. Mas não confio em mais ninguém. Não acredito que o Estado italiano tenha verdadeiramente intenção de combater a máfia. Quero avisá-lo, senhor Juiz. Depois deste interrogatório, o senhor se tornará uma celebridade. Mas tratarão de destruí-lo física e profissionalmente”.

Essas palavras foram ditas pelo mafioso Tommaso Buscetta, em 1984, por ocasião de sua “delação”, durante a chamada Operações Mãos Limpas (“Mani Pulite”), na Itália.

Giovanni Falcone, o Juiz símbolo da maior ofensiva da história italiana contra as organizações criminosas, dizia viver “sob fogo cruzado de amigos e inimigos, inclusive no interior da magistratura”.

Essas e diversas revelações se encontram em sua entrevista-livro “Coisas da Cosa Nostra – A máfia vista por seu pior inimigo” (Giovanni Falcone com Marcelle Padovani. Ed. Rocco.2012).

E o que ocorreu após a prisão de diversos criminosos, bloqueio e confisco de milhares de bens e dinheiro, descoberta de enormes desvios de recursos públicos, lavagem de dinheiro e atuação conjunta entre empresários, servidores públicos e agentes políticos?

Os poderes e órgãos públicos, juntamente com o setor privado, tomados por bandidos e inescrupulosos, incrustrados em suas entranhas por décadas (séculos?), alicerçados por boa parcela da população que preferiu se omitir, ser conivente ou até aderir à ideia de ser necessária uma “tolerância com o ilícito” para haver movimentação das engrenagens da economia (vide “teoria da graxa”), passaram a investir avidamente contra as autoridades atuantes.

Observou-se que a amplitude da prática criminosa no país abarcava não apenas este ou aquele setor, mas sim um sistema plural, arraigado inclusive em terreno cultural, onde até no mais simples empreendimento e mesmo distante rincão, a prática do esquema ilícito e corrupto vicejavam e, de alguma forma, estruturavam o esquema piramidal de poder e influências.

Francesco Saverio Borrelli, um dos Procuradores da operação, chegou a dizer que “quando fomos além, ficou claro que a corrupção não envolvia só a política, mas amplas faixas da população”.

O ataque passou a ser pessoalizado, individualizado e, posteriormente, generalizado.

Usaram os mais variados meios para conspurcar a credibilidade e legitimidade dos investigadores e julgadores, com vistas a criar nulidades jurídicas e apoio dos mais variados grupos que ostentavam bandeiras de “defesa da legalidade”, “da democracia” etc.

Alguns meios de comunicação passaram a fomentar a discórdia e a deixar a imparcialidade de lado, ante o regramento e interesse de seus proprietários.

Imputaram desonras e até crimes aos Magistrados e aos Procuradores.

Dossiês foram espalhados, com clara articulação de grupos que detinham poder e muito dinheiro para confeccioná-los.

Criaram dados falsos sobre prisões cautelares e sobre os modos de atuação da “Mãos Limpas”, de modo a passarem a ser contestados todos os meios utilizados pelos investigadores e magistrados na obtenção das condenações e perda de bens.

Fragmentaram a força-tarefa.

Retiraram o apoio de órgãos de cooperação e atuação conjunta.

Mudaram as leis, principalmente as procedimentais, criando obstáculos para novas investigações e as que estavam em andamento.

Aceitaram como verdadeiras informações e ilações que antes sequer cogitariam analisar, ante a ilicitude de suas obtenções e afronta aos mais comezinhos princípios constitucionais.

Alteraram “entendimentos jurídicos”.

Em meio isso, apesar de uma aparente mudança no clima nacional, mantiveram-se as mesmas estruturas, promiscuidades e cultura política de administrar e fazer as coisas, em todo o país.

O “efeito rebote” também foi sentido pelos investigadores e magistrados em suas províncias (estados) e comunas (municípios).

E assim… corruptos das mais variadas estirpes, graus, rótulos, brevês e camadas, alocados de forma pulverizada nas milhares de funções que a vida em sociedade enseja, obtiveram a retomada de boa parcela das rédeas em suas áreas de atuação, com aperfeiçoamento de seus métodos de ação, dissimulação, dissuasão e blindagem.

Aqui, no Brasil, quem não reconhece o mesmo panorama acima descrito, até o penúltimo parágrafo?

O que virá?

*Fernando Martins Zaupa, Promotor de Justiça

Texto: Artigo publicado no Estadão 10/08/2019