No dia 1º de abril de 2021, entrou em vigor a Lei nº 14.132, de 31 de março de 2021, que, visando dar maior amplitude à proteção da liberdade individual, tipificou o delito de stalking, acrescentando o art. 147-A ao Código Penal.

O termo “stalking” veio de empréstimo da língua inglesa (verbo to stalk) e corresponde à pratica da perseguição contumaz, obsessiva e repetida junto à esfera privada da vítima.

Assim, a conduta de, in verbis, “perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade” passou a ser sinônimo de crime com o advento da citada lei.

Dessa maneira, a prática delitiva consiste em uma forma de violência (física ou psicológica) contra a liberdade individual da vítima, havendo violação, de forma reiterada, da esfera da vida privada, podendo, inclusive, ser restringida a capacidade de locomoção.

Da leitura do dispositivo em comento, podemos observar um leque de hipóteses para as ações delitivas.

 Todavia, considerando que o termo stalking é proveniente da língua inglesa, importante citar o Violence Against Women Act, dos Estados Unidos, que preconiza:

“O termo stalking significa se envolver em um curso de conduta dirigido a uma pessoa específica que causaria a uma pessoa razoável (A) medo por sua segurança ou pela segurança de outras pessoas; ou (B) sofrimento emocional substancial.”[1]

Portanto, muito embora não conste expressamente no tipo penal em comento, a existência do “medo”, segundo alguns, seria necessária para a configuração do delito.

Assim se afirma, porquanto, segundo conceituação doutrinária, stalking pressupõe o elemento medo, uma vez que, se assim não fosse, alguns princípios básicos de direito penal seriam aviltados, especialmente aqueles relativos a fragmentariedade, subsidiariedade e proporcionalidade, ampliando por demais o alcance da norma, de forma a atingir, desnecessariamente a prática de determinadas condutas que a princípio seriam legítimas, por exemplo, as de detetives particulares, operadores de telemarketing, paparazzi etc., que tradicionalmente realizam seus trabalhos “perseguindo” seus “alvos”, ainda que de maneira impertinente, porém, não a ponto de violar os núcleos da figura típica previstos no art. 147-A do Código Penal.

Sem a existência de medo, abre-se a oportunidade de se criminalizar condutas ou comportamentos menores ou mesmo insignificantes, lembrando que o direito penal, como última ratio, deve ser utilizado como último recurso a reprovar determinados atos.

Outro importante ponto, que já vem sendo debatido por inúmeros doutrinadores, diz respeito à expressa revogação do art. 65 da Lei das Contravenções Penais (LCP), que tratava do delito de perturbação da tranquilidade, conforme consta do art. 3º da Lei nº 14.132/21.

Questiona-se: quais as possíveis consequências da revogação prevista? Há quem diga, num primeiro momento, ter havido a simples abolitio criminis. Contudo, o assunto merece destaque e maior cuidado em sua discussão. Existem ao menos duas situações possíveis na interpretação do dispositivo em comento.

A revogação expressa do art. 65 da LCP prevista na Lei nº 14.132/21 não significa, por si só, que a abolitio criminis passou a ser a regra. É preciso distinguir as situações práticas e analisá-las com acuidade, uma vez que a abolitio criminis não se vincula ao simples fato de ter havido revogação do dispositivo penal anterior.

Com efeito, torna-se imperioso verificar se existe a continuidade do ilícito anterior em comparação com o novo dispositivo penal.

In casu, devemos perquirir se houve a figura da continuidade normativo-típica, ou seja, se a conduta que estava prevista no tipo anterior (art. 65 da LCP), sendo revogada (sem que tenha havido solução de continuidade), continua a ser tipificada no novo tipo penal.

Assim, ao analisar a prática dos fatos, alguns fatores devem ser observados, lembrando que a mais importante distinção entre os dois delitos se situa na inclusão, na nova lei, da reiteração de condutas. Mesmo que haja uma certa similaridade entre os dois delitos, a prática continuada e reiterada dos fatos é o que, basicamente, os diferencia.

Se a conduta do agente, praticada sob a égide do art. 65 da LCP, de forma reiterada e ameaçadora contra a vítima (havendo perseguição) se amoldar ao novo tipo penal de stalking (lembrando da similaridade dos delitos), não há que se falar de abolitio criminis, mas sim do princípio da continuidade normativo-típica.

Por outro lado, se a prática delitiva não se amoldar ao novo delito, basicamente pela ausência de perseguição (o novo delito pressupõe a prática de mais de um ato), então poderemos falar em abolitio criminis.

Assim, apesar das controvérsias geradas e inúmeras discussões sobre o tema, é de suma importância mencionar que o legislador não considerou a perturbação reiterada da tranquilidade um insignificante penal, mas sim o elevou de categoria, alterando sua topografia, passando a ser encontrado no art. 147-A do Código Penal.

Muito embora a nova lei tenha ampliado o espectro qualitativo – uma vez que não apenas a tranquilidade, mas também a liberdade pode ser objeto da conduta –, também previu uma maior intensidade, na medida em que exigiu uma reiteração de condutas, que, inclusive, também é objeto de estudo doutrinário e inúmeras discussões no meio jurídico.

Dessa forma pergunta-se: qual seria o número mínimo de condutas para a configuração do novo delito previsto no art. 147-A do Código Penal? Minimamente duas? Três condutas? Qual seria a frequência de atos para se configurar a “reiteração de condutas”?

Pensamos que a resposta a tais questionamentos vai depender do caso concreto, que permitirá uma leitura mais próxima dos fatos, de forma a enquadrá-los, ou não, na hipótese de reiteração. Só assim poderemos verificar a existência de uma conexão de atos – inclusive com proximidade de tempo, lugar, modo de agir etc. – que permita uma análise mais segura de um ato contínuo em desfavor da vítima.

Outra questão de suma importância dentro da discussão sobre a revogação da contravenção penal de perturbação da tranquilidade diz respeito à aplicação do preceito secundário da norma.

Com efeito, o novo tipo penal (art. 147-A do CP) possui pena mais grave (seis meses a dois anos e multa), razão pela qual havemos de falar em novatio legis in pejus. Assim, para os fatos ocorridos antes da nova lei, deve ser aplicada a pena prevista para a contravenção (prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa), uma vez que mais benéfica, praticando-se a ultra-atividade da lei antiga, no que diz respeito à pena.

Seria a mesma regra que foi aplicada ao caso do delito do estupro de vulnerável, que era encontrado no art. 213, combinado com o art. 224, alínea “a”, do Código Penal, tendo sido posteriormente redefinido para o art. 217- A do Código Penal; uma vez que a pena do delito antigo era mais branda, foi aplicada aos casos cometidos durante sua vigência, por meio do princípio da ultra-atividade.

Por fim, passemos a algumas considerações sobre a aplicabilidade do novo delito de stalking no âmbito da violência contra a mulher, sem a pretensão de esgotar o tema.

Muito embora o delito em questão tenha como sujeito passivo qualquer pessoa, não se exigindo qualquer condição especial da vítima, é sabido que a maior incidência da prática delitiva do perseguidor ainda se dá contra a mulher.

Assim, seja por uma rejeição amorosa, por ciúme, inveja, vingança etc., a grande maioria das vítimas ainda são as mulheres, conforme inúmeros estudos feitos em diversos países, de forma a apontar uma prevalência do stalking por vítimas do sexo feminino.

Essa inclusive foi uma das principais motivações do legislador ao tratar do delito de stalking, a perspectiva de gênero, ou seja, estender o âmbito de proteção da mulher, além do que já consta, por exemplo, na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006).

 Vale lembrar que a perseguição reiterada já era bastante comum no âmbito de violência doméstica e familiar, sendo importante destacar que inúmeras condutas que antes eram praticadas na vigência da Lei nº 11.340/06 serão facilmente identificadas junto à Lei nº 14.132/21.

Agora, todavia, praticado o delito de stalking exclusivamente em razão do gênero, aplica-se uma causa de aumento de pena previsto no § 1º do art. 147-A do Código Penal, elevando-se a reprimenda penal em metade.

Mais uma vez, observa-se um olhar atento do legislador à vítima mulher, de forma a elevar o preceito secundário da norma, por meio de causa de aumento de pena, ampliando-se o rol legislativo que visa aprimorar a proteção do gênero feminino, pela reprimenda penal, somando-se a muitas outras normas de proteção já encontradas no ordenamento jurídico brasileiro.

É sabido que a violência contra a mulher pode ser praticada de inúmeras formas, podendo o seu autor incidir em uma série de delitos já previstos no ordenamento jurídico, a exemplo do que ocorre com as vias de fato, lesões corporais, ameaça, constrangimento ilegal, perturbação da tranquilidade, feminicídio etc., que agora se somam ao delito em apreço (stalking), de forma a ampliar o espectro de proteção à mulher.

Assim, a criminalização e penalização do stalking praticado com violência de gênero é essencial, justamente diante do grande leque de probabilidades de condutas que podem ser praticadas pelo agente perseguidor, de forma a se agravar até o desiderato final, que seria o feminicídio, como último degrau da senda criminosa.

A tipificação do delito de stalking contra a mulher, a nosso sentir, inclusive com previsão de causa de aumento de pena pelo gênero, seria mais uma atitude do legislador de tentar evitar um mal maior, em uma soma de esforços para sua maior proteção, somando-se às demais prevenções legislativas já existentes.

Finalizamos essa sutil exploração do tema, no intuito de trazer à tona nossa perspectiva sobre o assunto e fomentar outras discussões mais aprofundadas, mormente pela novidade trazida ao ordenamento jurídico brasileiro, diante da nova Lei de Stalking, que certamente será objeto de inúmeras discussões, servindo de aprimoramento doutrinário e maior interpretação legislativa, para aplicação mais escorreita da lei

Kristiam Gomes Simões - Promotor de Justiça 

 


[1] Tradução extraída de: COSTA, A. S.; FONTES, E.; HOFFMANN, H. Stalking: o crime de perseguição ameaçadora. Consultor Jurídico, São Paulo, abr. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-06/academia-policia-stalking-crime-perseguicao-ameacadora. Acesso em: 26 abr. 2021.