Essa é uma história engraçada, mas com enredo amargo, que poucos conhecem. Ambos viviam felizes até o fim de novembro do ano passado (2017), pois desde 1974 moravam no IPTU de cada inscrição imobiliária da Prefeitura de Campo Grande, a limpeza pública representada pela “Vassoura” e o “Saco de Lixo” simbolizando a coleta feita pelo Município.

Mas, como todo casamento que se preza, não há união sem crise, como a que ocorre atualmente. A Vassoura, de tanto ser questionada judicialmente, já que não é possível mensurar quanto cada cidadão produz de lixo a ser recolhido em praças, ruas e canteiros, ou seja, em todo o espaço de uso comum da coletividade, viu-se então forçada a divorciar do Saco de Lixo, pois esse achou quem o incentivasse, doravante, a caminhar sozinho, já que, diferentemente daquela, em tese é possível medir quanto cada imóvel produz de detritos. Será?

Primeiro, o Saco de Lixo correu para entrar na conta d’água, mas o Código de Defesa do Consumidor proibiu. Depois, voltou para a antiga casa, fez um puxadinho no IPTU, mas a obra foi embargada pela revoltada população e, agora sozinho na rua, virou sem teto a esperar  um abrigo seguro.

Tudo isso porque a Súmula Vinculante 19 do STF entrou na vida do casal para provocar: “A taxa cobrada exclusivamente em razão dos serviços públicos de coleta, remoção e tratamento ou destinação de lixo ou resíduos provenientes de imóveis não viola o artigo 145, II, da Constituição Federal”, porém deixou de explicar que é necessário que a coleta esteja “completamente dissociada de outros serviços públicos de limpeza realizados em benefício da população em geral e de forma indivisível” (conforme voto no Agravo de Instrumento nº 732657/GO, julgado em 14/05/2009, que produziu aquele enunciado).

No caso desta Capital, consta que na vigência daquele longo casamento, em fins de 2012, a Prefeitura terceirizou esses serviços, ao que tudo indica, englobando o casal divorciando, a limpeza pública (Vassoura) e a sujeira particular (Saco de Lixo), pois é corrente e notório ver os operários uniformizados pela mesma concessionária executando ambas as atividades.

Ora, então o custo desses serviços acabou, de forma simplista e aleatória, dividido para 410.000 propriedades urbanas averbadas na Prefeitura, o que causou um reboliço e comoção pública pela surpresa do casamento desfeito, notadamente porque violou alguns princípios básicos de tributação, como o de não esperar 90 dias para dar início à arrecadação da nova Taxa de Lixo, além de outros abusos que fez o Município recuar e prometeu devolver o indevido tributo, e se isso não acontecer, para quem requerer a restituição, ficará o dito pelo não dito, passível de responsabilização.

Como desde os tempos da vovó era o IPTU quem suportava a varrição e a retirada do lixo produzido pela população, com o crescimento da cidade, que virou Capital em 1979, agora no divórcio do casal apurou-se um patrimônio oculto de 110.000 inscrições municipais sem a taxação. São averbações de terrenos que não geram lixo doméstico ou foi negligência do coletor municipal? Ah, será que o terreno nú gera lixo para ser recolhido e taxado todo mês? Ainda mais se estão com alíquotas majoradas em mais de 200% que o terreno construído?

Seja lá o que for, o certo é que se impõe decotar daquele custo (se estiver incluso), o valor referente ao gasto que a Vassoura tem, para que essa possa viver em paz e deixe o Saco de Lixo ter vida própria, senão restará caracterizado o fenômeno da bitributação. O bom, aliás, eram ficar casadinhos, eternamente, no IPTU, pois esse tributo é a pessoa certa para dar conta desse casal complicado, prestes a completar 119 anos, como faz Goiânia e outras grandes cidades, já que seu objetivo é tratar a todos com igualdade, seja corrigindo os valores da planta imobiliária local para mais, se for o caso, ou para valores menores, a levar em conta a depreciação normal dos imóveis pelo decurso do tempo, já que milhares de contribuintes, como é público e notório, não conseguem vende-los pelo valor estimado pela Prefeitura, que, inexplicavelmente, não considera a volatilidade do mercado imobiliário para fazer o lançamento do tributo que só aumenta para milhares de imóveis idosos, em vez do preço de mercado que só despenca.

Talvez esse divórcio seja fruto dos tempos modernos, de redes sociais e de novas uniões de gênero, pois, se onde há fumaça tem fogo, parece que estão travestindo a nova “Taxa de Lixo”   de uma natureza jurídica que ela não possui como se percebe na seguinte transcrição jornalística: “Diferente da receita com o IPTU, que é destinada ao caixa do município, os valores arrecadados com a taxa do lixo são usados exclusivamente para pagamento da (concessionária). A prefeitura não pode dar outra destinação ao valor arrecadado” (publicado na rede no dia 24 p.p). Ora, se isso fosse verdade, estar-se-ia diante de uma teratologia jurídica, porquanto seria uma verdadeira contribuição social ou empréstimo compulsório, cuja criação é vedada terminantemente aos Municípios, o que poderia tipificar uma possível improbidade administrativa.

Ademais, para complicar mais a vida dos contribuintes, a Justiça já entendeu que “As taxas que, na apuração do montante devido, adotem um ou mais elementos que compõem a base de cálculo própria de determinado imposto, desde que não se verifique identidade integral entre uma base e outra são constitucionais” (Súmula Vinculante n. 29 do STF).

No entanto, o único elemento da base de cálculo até agora referendado pela Justiça (STF) para aferir a divisibilidade da nova Taxa de Lixo é a metragem do imóvel urbano (área do terreno), o que está agasalhado na Lei Complementar Municipal nº 308, de 28 de novembro de 2017 que instituiu a nova taxa. Os demais, não. Logo, o tamanho do prédio (área edificada), o rendimento financeiro maior ou menor em algumas regiões da cidade  (perfil socioeconômico imobiliário do local do imóvel) e a utilização que se faz da propriedade (uso predominante do imóvel), eleitos pela Prefeitura de Campo Grande  para a formação do preço do tributo geraram mais injustiça e insegurança jurídica, do que a certeza ou o conforto de que o pagamento da taxa é justo e igualitário.

Em síntese, o legislador municipal deve estabelecer critérios seguros para a medição individualizada do serviço de coleta, pois não havendo como identificar os parâmetros da especificidade e da divisibilidade do serviço prestado a cada contribuinte, estar-se-á, na verdade, diante de um tributo vinculado ao serviço genérico de limpeza pública, que deve ser custeado por meio de imposto e não de taxa. Do contrário, se não for formatada uma base de cálculo que separe adequadamente esse casal, a Vassoura e o Saco de Lixo irão sair de mãos dadas no bloco carnavalesco que se avizinha, comemorando a reconciliação, o que não seria ruim, já que são pessoas centenárias e nesta fase da vida devem se conformar com o destino que o Supremo lhes reservou.

Procurador de Justiça Aroldo josé de Lima