Na primeira reportagem da série sobre intersexualidade, o 'Nexo' conversou com o sociólogo Amiel Vieira; criado como menina, ele descobriu aos 33 anos que nascera com o sistema reprodutor masculino 
 

Durante toda a sua vida, o sociólogo paulistano Amiel Modesto Vieira foi criado como uma menina, Anamaria. Aos 12 anos, seus pais disseram que ela era, no entanto, diferente: ao contrário de suas colegas de sala, Anamaria nunca menstruaria, porque nascera sem o sistema reprodutivo. Essa não era a história verdadeira. Em 2015, Anamaria encontrou uma carta do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo, e descobriu que nascera sim com sistema reprodutor -o masculino. Ela tinha 33 anos de idade. Por uma condição genética chamada de "insensibilidade androgênica", seu corpo é menos sensível ao hormônio testosterona, o que afetou seu desenvolvimento desde a gestação. Quando nasceu, os médicos interpretaram sua genitália como não claramente definida como um pênis. Tratava-se de uma criança intersexual.

Os médicos optaram então por adaptar o corpo do bebê a um dos dois gêneros adotados como norma. No caso, retiraram o sistema reprodutivo masculino, e receitaram tratamentos hormonais em um esforço para levar o corpo a desenvolver uma aparência feminina. A operação foi mantida em segredo, e Anamaria foi criada pelos seus pais como uma menina. A descoberta de sua própria história mais de três décadas depois ainda está sendo digerida. Em um período de menos de três anos, ela explorou a bissexualidade e o lesbianismo como mulher. Até compreender, em 2016, que não se encaixava no gênero feminino que os médicos lhe atribuíram ao nascer. E que é um trans masculino, Amiel. “As pessoas intersexuais têm seus problemas 'resolvidos' na sala de cirurgia, com uma estrutura de segredo e silêncio que se estabelece com um aporte teórico. Há um pacto para que esses corpos não estejam diante da sociedade.” Amiel Vieira Em entrevista ao Nexo O caso de Amiel não é isolado. Há dezenas de particularidades que fazem com que pessoas desenvolvam características reprodutivas ou sexuais que não parecem se encaixar nas definições típicas de masculino ou feminino. Isso inclui, por exemplo, o formato do sexo, a distribuição da gordura no corpo, e a disposição dos órgãos reprodutivos internos.

O termo “hermafroditismo” já foi usado para definir a ocorrência desses tipos de corpos em seres humanos, mas vem sendo rebatido nos campos médico e social. Em geral, a anatomia intersexual tem causas genéticas. Há casos em que ela só se manifesta a partir da puberdade, ou em que é mais dificilmente perceptível -por exemplo, pessoas que têm características sexuais externas femininas, mas cuja carga genética é masculina. A definição de quais casos se encaixam na intersexualidade ainda não está solidificada. Segundo uma nota da ONU sobre o tema, entre 0,05% e 1,7% da população humana é intersexual. Se a projeção mais elevada for adotada, a proporção é similar àquela de pessoas com os cabelos ruivos.

Conselho de medicina determina intervir sobre intersexuais Assim como ocorreu com Amiel logo após o nascimento, muitos intersexuais são alvo de cirurgias e terapias hormonais, que buscam conformar seus corpos às definições típicas de masculino ou feminino. Isso ocorre mesmo quando sua configuração natural não resultaria em riscos à saúde, como dificuldade de urinar. Com esses procedimentos, médicos e famílias desejam facilitar a adaptação de pessoas intersexuais à vida social e evitar que sejam estigmatizadas como “anormais". Por isso, essas cirurgias são chamadas de “normalizadoras”. No Brasil, a resolução 1.664 de 2003 do Conselho Federal de Medicina trata da intersexualidade e dá suporte às intervenções. Ela reconhece que “sempre restará a possibilidade de um indivíduo não acompanhar o sexo que lhe foi definido” por uma decisão médica. Mas rebate a possibilidade de não intervir nos corpos de intersexuais porque faltariam “estudos de longo prazo” sobre os efeitos de uma pessoa viver sem um sexo definido. Segundo a resolução, médicos devem tomar uma “decisão racional” e chegar a “uma definição adequada do gênero e tratamento em tempo hábil”. Ou seja, segundo o CFM, médicos devem determinar qual gênero deve ser atribuído a intersexuais no decorrer de suas vidas.

Eles devem intervir de acordo com esse discernimento, o que pode envolver cirurgias e tratamentos hormonais por longos períodos. ONU recomenda não intervir Muitos dos próprios intersexuais combatem, no entanto, a prática de operar bebês para adequá-los a um dos dois gêneros adotados tipicamente como norma. Por serem muito jovens quando a decisão sobre sua identidade é tomada, muitos intersexuais não são devidamente informados ou consentem com procedimentos que retiram tecidos e alteram seus corpos irreversivelmente. E que reforçam a ideia de que eles precisam necessariamente se adequar às definições típicas de masculino e feminino.

Em seu material informativo, a ONU ressalta que as cirurgias podem levar a dor crônica, infertilidade, incontinência urinária, perda de sensibilidade sexual e sofrimento mental, incluindo depressão. “Dada sua natureza irreversível e impacto sobre a integridade física e autonomia, tais cirurgias e tratamentos médicos desnecessários e não solicitados deveriam ser proibidos. Crianças intersexuais e suas famílias deveriam receber apoio e aconselhamento adequados, incluindo de pares [outras pessoas intersexuais].”

Nota da ONU sobre intersexualidade Com base em conversas com pessoas intersexuais, a Isna (Sociedade Intersexo da América do Norte) recomenda intervir cirurgicamente em bebês somente quando há riscos à saúde. Mas nunca com o único intuito de fazer os genitais parecerem “mais normais”. Independentemente de cirurgias, uma pessoa intersexo pode se identificar com e adotar um gênero em seu desenvolvimento. Ela mesma pode decidir, com o tempo, se deseja realizar cirurgias ou aderir a terapias hormonais. A Isna recomenda que os casos sejam tratados de forma aberta, com auxílio de psicólogos e assistentes sociais, e que se promova o contato com outras pessoas intersexo. Apesar das recomendações da ONU e de entidades representativas de intersexuais contra a prática, há apenas três países que vetam as cirurgias normalizadoras em bebês: Chipre, Austrália e Chile. O Nexo conversou com Amiel Vieira para entender o impacto do procedimento e do segredo em torno dele sobre sua vida. Atualmente, ele cursa doutorado em bioética, ética aplicada e saúde coletiva na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ele se dedica à questão da intersexualidade e da identidade de gênero. Como você define intersexualidade? AMIEL VIEIRA As definições médicas vão falar que a intersexualidade é uma anomalia genética, mas você enxerga na natureza casos prevalentes de intersexualidade. Nas plantas e nos animais isso não é um problema. Hoje, para mim, a intersexualidade é um acontecimento durante o encontro dos DNAs humanos que se insere na evolução. O corpo intersexo é parte da humanidade, mas como temos a prática cultural de padronizar corpos e criar estereótipos, ele é visto como anômalo. Qual é o seu caso de intersexualidade? AMIEL VIEIRA São pelo menos 41 variações de intersexo, mas a que eu tenho é a “insensibilidade androgênica”. O meu corpo não aceita muito bem a testosterona, que seria o primeiro hormônio secretado durante a gestação. Eu nasci com todo o aparelho reprodutor masculino, mas meu pênis não se desenvolveu muito bem por causa desse estado de intersexualidade. Nasci com uma genitália ambígua e um pênis que não tinha o tamanho esperado. No meu caso, os médicos investigaram por nove meses para decidir o que iriam fazer, se deixariam meu corpo com a genitália daquele tamanho ou se iam modificá-la. Eles resolveram retirar o aparelho reprodutor masculino, pênis, testículos, saco escrotal, tudo, e depois criar o aparelho genital feminino.

Quando eu olho meu prontuário, acho que eles já tinham essa ideia muito antes, mas deram uma chance de investigar mais e conversar com a família, que precisa consentir com o procedimento. Eu era o primeiro filho de uma família evangélica. Imagina uma criança que não tem, aparentemente, o aparelho reprodutor funcional, o desespero que isso causa. Isso junto à pressão médica com o aparato do Estado. A pessoa mais importante nessa história, eu, foi tirada de lado. Depois de feita toda a cirurgia, foi recomendado que meus pais  mudassem de bairro para construir outra história para mim, manter um segredo. Não um segredo médico, mas da própria criança. Essa prática é comum? AMIEL VIEIRA Um dos idealizadores da ideia de que gênero pode ser “resolvido” [cirurgicamente] no caso da questão intersexo é o psicólogo e psiquiatra John Money [que nasceu em 1921 na Nova Zelândia e morreu em 2006 nos Estados Unidos]. A ideia é de que, se há um caso de intersexo, pode-se mudar o gênero da criança tranquilamente e ensiná-la a viver com o gênero que ela recebeu. Se fizer certinho a criança não percebe, e seremos todos felizes. As pessoas intersexuais têm seus problemas "resolvidos" na sala de cirurgia, com uma estrutura de segredo e silêncio que se estabelece com um aporte teórico. Há um pacto para que esses corpos não estejam diante da sociedade. Isso foi feito comigo e acontece com pessoas intersexo sempre, é um protocolo adotado no mundo inteiro, mas que gera problemas. A criança cresce com insegurança, sempre sente um tratamento meio estranho da família, que não quer contar a verdade. Ela fica no limbo, tenta entender e pensa “será que estou louco, será que escondem alguma coisa de mim que não estou sabendo?”. Eu ficava pensando “não, minha família é legal, meus pais são ótimos, não vão esconder nada de mim”. Mas uma hora algo acontece e essa mentira cai. E quando cai, é uma situação muito doida.

A medicina tem um olhar totalmente biologizante para a intersexualidade. Conversando com alguns alunos, percebo que as aulas de medicina trabalham com dados antigos, com a ideia de obter um padrão social adequado. Isso é algo interessante: os corpos têm que andar e se portar de um jeito. E os corpos intersexo e trans não são considerados adequados ao padrão de "perfeição” que a sociedade quer e aceita. Os intersexos portadores de genitália ambígua passam por uma mutilação, muitas vezes sem precisar. Eu não vejo ninguém descobrindo e falando que está feliz com o que aconteceu. Como você foi criado? AMIEL VIEIRA Houve uma tentativa de me encaixar no corpo que me deram, eu fui criado como uma menina, Anamaria Modesto Vieira. Mas eu me sentia muito inadequado e desajustado dentro da feminilidade. Nunca fui de me embelezar muito até por ter crescido em um ambiente evangélico pentecostal fechado. Preferia brincar com coisas de pensar, ler, jogar vôlei, futebol, mais do que boneca, chazinho, essas coisas. Uma vez, com 8 anos, ganhei do meu tio uma boneca de porcelana. Ele achou que estava dando o melhor presente do mundo, mas ela ficou no meu quarto como um item decorativo.

Na adolescência, eu comecei a ouvir as meninas da minha sala falando da primeira menstruação, “ai, desceu”, que dá cólica etc. Com 12 anos conversei com a minha mãe, e ela disse que eu não tinha o sistema reprodutor, útero, ovário, nada, e que eu não podia ter filhos. Ela não me contou que no meu caso era por causa das cirurgias, mas disse que muitas mulheres não têm sistema reprodutor, adotam filhos e vivem bem. E isso me pacificou. É a lógica da família, de que seus pais têm experiência e tudo o que falam vai dar certo. Eu disse para as meninas da minha sala aquilo que todo mundo dizia, que “desceu”. Mas imagina dizer e não ter aquela experiência. Para a mulher, dar a luz é um momento mágico. O momento da gravidez é de questionamento, de passagem. Eu sonhava em ter um filho, e saber que não poderia passar por isso me frustrava. Eu dizia “ok, tem a adoção”, mas isso gerava em mim a ideia de que eu era uma mulher incompleta. Passei por igrejas mais abertas, até parar em uma presbiteriana.

As coisas eram mais light lá. Mesmo assim, se eu arranjasse um namorado e casasse, como diria para ele que não poderia ter filhos? Com 12 anos, eu comecei a tomar hormônios femininos, e com 20 anos eu fiz uma neovaginoplastia [cirurgia que dá à genitália a configuração de uma vagina], a última parte do processo de normalização. Eu sabia que não tinha o aparelho reprodutor e nem a vagina, e achava que isso era necessário para ter uma vida sexual, mesmo sem me reproduzir. A minha esperança era de me sentir feminina por completo, de sentir que eu poderia namorar caras. Mas isso não aconteceu, continuou tudo do mesmo jeito, a mesma dificuldade de lidar com o próprio corpo. Eu vejo como uma cirurgia que finalizou um processo médico. A minha sexualidade continuava entenebrecida. As relações que eu tive com homens aos 18 anos foram só beijos e abraços, porque na igreja evangélica sexo antes do casamento é pecado. Era só para pacificar e provar coisas, mas eu não estava com a sexualidade bem resolvida por estar em uma religião que não incentiva a investigação dela. Como foi descobrir sua intersexualidade? AMIEL VIEIRA Em agosto de 2015 eu comecei a mexer nas coisas da minha mãe procurando documentos que precisava enviar para o mestrado. E encontrei uma carta perdida, enviada pelo Instituto da Criança [do Hospital das Clínicas, ligado à Universidade de São Paulo].

Ela pedia informações sobre qual era o problema que eu tinha, que era essa síndrome de insensibilidade andrógina. A Anamaria Modesto Vieira descobriu toda essa história e caiu um balde de água gelada no cérebro dela. Comecei a juntar as coisas, eu não estava tão doido, escondiam alguma coisa de mim. A investigação durou mais ou menos um ano, comecei a entender o que era ser intersexual, e só tive certeza quando olhei meu prontuário médico. Eu tinha 33 anos. Esse é um processo que vai completar 3 anos em setembro. É um processo de digerir que eu fui mutilado sem meu consentimento, que não quiseram me ouvir. Minha mãe falava “você sempre foi curioso, por que nunca me perguntou?”. Eu vivia em uma família evangélica, que pelos princípios que tem, não poderia ter mentira. Para mim não havia como perguntar, havia muita confiança. O que veio depois? AMIEL VIEIRA Eu já tinha saído da igreja, e me descobrir intersexual alterou tudo. Fui percebendo que nunca conseguiria me ajustar a essa realidade que não me pertence. Eu me envolvi concomitantemente com o movimento LGBT, e as questões de sexualidade começaram a florescer em mim. A beleza feminina sempre me saltou aos olhos, mas eu pensava “cuidado com isso aí, não é bem isso”.

A religião cristã vê a homossexualidade como pecado. Você percebe a beleza da mulher, mas internaliza que é pecado e isso some do seu horizonte. Primeiro, eu explorei como bissexual e, entre janeiro e abril de 2016, como lésbica. Me apaixonei por mulheres, tive momentos em que percebi aquela reação física e do próprio pensamento de ver o corpo feminino não só como belo em si, mas algo que atrai realmente, por tudo que envolve o feminino. Tive que lutar contra padrões impostos pela religião e estabelecidos dentro de mim, de pensar que eu tinha que gostar de homens. Assumir que era lésbica diante de minha família foi uma hecatombe. Meus pais sentaram comigo para conversar e falaram “você precisa repensar sua opção sexual pelos nossos parentes, familiares, pelo Evangelho que a gente pregou. Você pode estar se confundindo”. Foi assustador, porque minha família achava que isso poderia ser pacificado. Como você se entendeu como transexual? AMIEL VIEIRA Eu realmente estava em um ponto de virada na minha vida, fui fechando brechas. Eu conheci a Ana Terra Grammont e tive a oportunidade de conviver com a namorada dela, a Amara Moira [travesti, doutoranda em literatura da Unicamp e autora de um livro sobre sua experiência como prostituta]. Foi o encontro com ela que trouxe a questão trans para meus olhos. Eu pensei “tentaram me fazer Anamaria, mas eu nunca fui. Eu não quero mais esse nome”. Comecei a pesquisar nomes não binários e foi nessa pesquisa em um Uber, voltando da casa de uma amiga para fazer um trabalho em grupo, que assumi no dia 15 de agosto de 2016 meu nome como você conhece hoje, Amiel.

Me encontrei e me percebi dentro da transmasculinidade. Não uma masculinidade como a dada, mas uma que pode ser construída de forma menos tóxica e menos machista. Uma masculinidade que não é hegemônica, que muitas vezes tende à não binariedade [entre o gênero masculino e o feminino]. Foram dois sutiãs que eu queimei, o sutiã em si e o último traço de feminilidade, que era meu cabelo comprido. Eu raspei próximo ao dia 29 de janeiro de 2017, o dia da visibilidade trans. Me assumi como pessoa trans diante dessa sociedade doente que está aí, que cria padrões e exclui pessoas, que não conhece a intersexualidade e que precisa ser sacudida todos os dias.
 

Ver na íntegra: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2018/02/03/O-que-%C3%A9-intersexualidade.-E-como-%C3%A9-se-descobrir-intersexual