No dia 09 de abril de 2018, Coxim teve a grata satisfação de receber, na sala do Tribunal de Júri desta Comarca, a Caravana contra o feminicídio, encabeçada pela advogada e Conselheira Estadual da OAB/MS Dra. Eclair Nantes Vieira.

Durante a reunião, foi-me facultado o uso da palavra, para responder à indagação, de forma sucinta, sobre o que poderia ser feito para diminuir os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher em nossa cidade, tendo-se em vista que o Estado de Mato Grosso do Sul (e Coxim está inserido no contexto) registra números mais que duas vezes superiores à média nacional de fatos envolvendo violência contra a mulher. A resposta foi óbvia, simples e clara: é preciso inocular no ser humano um novo espírito que esteja despido do ânimo de promover ou perpetuar desigualdades.

Explico. O Brasil é um país ainda muito desigual, injusto e racista, e, por este indiscutível motivo é que a nossa Constituição da República impôs a todos atores sociais que trabalhem juntos e harmonicamente para dissipar tais injustiças. Neste sentido, constam como objetivos da República Brasileira, no art. 4º de nossa Carta Maior, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; o desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais; a promoção do bem de todos, sem qualquer espécie de preconceito, incluindo o de gênero.

Destaca-se que a violência de gênero praticada contra a mulher, do qual o feminicídio representa o mal maior e, infelizmente, não incomum, é uma das chagas que corrompe a sociedade e que decorre do contexto de intensa desigualdade de tratamento entre seres humanos. 

Não se pode olvidar que ainda vinga na sociedade a ideia de que a mulher deve estar reclusa no lar, exercendo atividades como a administração da criação dos filhos, cuidando da limpeza, da lavação das roupas, da preparação das refeições, brincando com bonecas etc. Ora. O papel criado para a mulher ocupar na sociedade é, definitivamente, de subalternidade.

É a professora Eliene Dias de Oliveira, doutora em História (professora do Campus de Coxim) e autora da obra “À procura de um norte – migração e memória de nordestino (Coxim-MT/MS 1958-1996)”, que nos recorda que a mulher que antigamente deixava o lar para também trabalhar pelo sustento da casa era considerada “mulher macho”. O uso da expressão “mulher macho” para designar aquelas que (como quase todas) são capazes de desempenhar qualquer tarefa em qualquer ambiente público (de poder) ou privado, comprova que nossa sociedade não dá o mínimo valor para o atributo da feminilidade, conforme as palavras da citada professora.

Devo dizer que, na minha atividade como Promotor de Justiça com atribuição para o combate à Violência Doméstica na Comarca de Coxim, tenho a percepção que há, hoje, um pequeno esforço para a mudança desse quadro de coisas injustas e que foi estabelecido artificialmente (já que nada indica que o par de cromossomos XX torne alguém inferior). Porém, as incertezas de um futuro mais igual, no qual a mulher também possa ocupar qualquer espaço que seu direito de cidadania concede, causam apreensão, angústia, medo na sociedade machista e a resposta a isso, muitas vezes, é a prática da violência.

Acaso houvesse uma balança com pratos que viabilizassem medir a desigualdade de gêneros, acredito que se poderia visualizar sobre um dos lados o peso da cultura que hoje se mantém arraigada na sociedade (o machismo) e do outro a ideia de emancipação da mulher e de igualdade de reconhecimento de direitos e capacidades.  

Não é desarrazoado afirmar que o fiel desta balança está quase que completamente inclinado para o lado da cultura machista. A mitigação dos casos de violência de gênero e de feminicídios –  como por exemplo, o que gerou a morte por espancamento da estudante de medicina Patrícia Mitie Koike (22 anos), no dia 9.4.2018, em Nova Iguaçu/RJ (o autor do bárbaro fato foi o namorado da vítima, Altamiro Lopes dos Santos Neto, 21 anos) – tem como pressuposto, portanto, a necessidade de se diminuir o nível de desigualdade nos papeis sociais atribuídos a homens e mulheres, ou seja, trazer o fiel da balança da discriminação para uma posição mais centralizada. Para que isso ocorra, o remédio é pressionar para cima o lado da balança que representa a discriminação (o machismo), o qual é mais massivo.

Para tanto, deve-se utilizar a legislação, principalmente penal, para destruir, massacrar, refrear, retaliar e punir os que exercem atos agressivos fulcrados em cultura ou ideologia segregadora. Cumpre ao Estado, por meio das leis, deixar patente à comunidade nacional que qualquer conduta imbuída de discriminação de gênero é desvalorada ao máximo por nosso ordenamento jurídico, porquanto considerada delituosa.

Do outro lado da balança (o que representa as vítimas de violência de gênero), tem-se que é necessário empurrá-lo para baixo. Aqui, é consenso ser imprescindível a utilização dos aparelhos públicos e da sociedade civil para esclarecer à sociedade, incluindo os operadores do direito, acerca da matriz da desigualdade de gêneros, sobre nossa formação social e intelectual machista, acerca da importância de se reconhecer no outro(a) (do sexo feminino) um ser de idêntica estatura moral, de igual dignidade, possuidor dos mesmos direitos.

É preciso também criar serviços públicos e fomentar trabalhos sociais que possam empoderar as mulheres, esclarecê-las acerca de seu papel social, quebrar as correntes da desigualdade e conceder apoio e suporte àquelas que ousarem se livrar dos grilhões da opressão. Muitas são as vítimas de violência que tentam a libertação e, por se verem mergulhadas em meio ambiente social que é absolutamente tóxico à sua autonomia e liberdade, e também por questões psicológico-afetivas, que a aprisionam no que se denomina ciclo da violência, se veem obrigadas a abaixar a cabeça, diminuir sua dignidade e retornar ao convívio com seus algozes.

Cabe destacar, por exemplo, que os tribunais superiores assentaram: a desnecessidade de representação nos casos em que há violência de gênero, impossibilidade de aplicação do princípio da insignificância, aplicação para casos também de contravenções penais (a Lei Maria da Penha afirma que se aplica a crimes, tendo havido lacuna em mencionar as contravenções), impossibilidade de celebração de transação penal ou suspensão condicional do processo. Atualmente, com a promulgação da Lei nº 13.641/2018, o descumprimento das medidas protetivas de urgência deferidas em favor das mulheres, além de poder resultar em prisão preventiva, é crime com pena de detenção de três a dois anos, sem possibilidade de fiança policial. É portanto norma que amplia a efetividade social da proteção à mulher.

No que se refere ao marco legislativo de repressão à violência de gênero, talvez o último desafio seja convencer aos tribunais superiores de que a recém-criada qualificadora do feminicídio tem natureza objetiva e, portanto, que pode ser cumulada com a aplicação das qualificadoras do motivo fútil ou torpe.

Interessante anotar que o espírito da legislação de abolição da discriminação de gênero foi apreendido até mesmo pelos ministros do STF mais libertários. Sua Excelência o Min. Marco Aurélio, que atualmente está se dedicando a uma verdadeira cruzada para constranger o STF a banir a possibilidade de execução de pena após julgamentos na segunda instância, no caso da Lei Maria da Penha, votou a favor do endurecimento do sistema penal punitivo contra os agressores. O Min. Marco Aurélio foi o relator da ADI 4424 que reconheceu a desnecessidade de representação para que o Ministério Público possa deflagrar ações penais contra atores que tenham praticado fatos envolvendo violência contra mulheres em contexto de discriminação de gênero.

O Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul, por seus membros, tem travado diariamente uma guerra de trincheiras em face da violência contra a mulher. O órgão público tem ganhado destaque nacional, principalmente em razão das letras e do pensamento da Dra. Ana Lara de Castro Camargo, Mestre em Direito pela Universidade de Buffalo, em quem, confesso, busco inspiração para compreender e atuar no tema diariamente.

Registra-se que a última vitória do MPMS, que beneficiou toda nação brasileira, foi o julgamento do Recurso Especial nº 1.643.051-MS, interposto pelo Procurador de Justiça Dr. Gilberto Robalinho. O juízo da 3ª Seção do STJ, proferido em 08 de março de 2018, em sistemática de recursos repetitivos (que forma precedentes nacionais obrigatórios) firmou o seguinte tema: “Violência doméstica e familiar contra a mulher. Danos morais. Indenização mínima. Art. 397, IV, do CPP. Pedido necessário. Produção de prova específica dispensável. Dano in re ipsa.” Noutras palavra, o MPMS conseguiu, reformando decisão do TJMS, estabelecer uma regra nacional, na qual, a partir do julgamento acima mencionado, nos processos envolvendo casos de Maria da Penha, as vítimas terão direito à indenização por dano moral, sem a necessidade de demonstração específica, com provas nos autos acerca da dor, do sofrimento, da humilhação. A própria prática de violência contra mulher já significa e comprova abalo moral indenizável.

Já a OAB pode e deve trabalhar com protagonismo no outro lado da balança, principalmente, no que diz respeito ao empoderamento da mulher, à instituição e ao fortalecimento de uma ampla rede de atendimento que seja conscientizadora da cultura do machismo e que ofereça integral apoio às vítimas que tentem se libertar dos grilhões da violência os quais, no Mato Grosso do Sul, ainda se mostram por demais resistentes. Também é viável o trabalho com a educação e orientação de nossas crianças e adolescente, sendo que isso sim será inocular no ser humano um novo espírito, destituído da atual concepção de desigualdade. E foi exatamente isso o que fez a Caravana da OAB/MS contra o feminicídio, por ter reunido a comunidade coxinense e nos permitido revisitar a tormentosa questão da violência de gênero.

Marcos André Sant’Ana Cardoso. Promotor de Justiça titular da 1ª Promotoria de Justiça de Coxim.