Este artigo tem como objetivo esclarecer o conceito técnico do instrumento urbanístico outorga onerosa do direito de construir e de mobilizar a sociedade para discutir sobre o assunto, tendo em vista o momento de revisão do Plano Diretor de Campo Grande.

O artigo 42 do Estatuto da Cidade (EC) determina que o Plano Diretor (PD) deverá conter, no mínimo:

I - a delimitação das áreas urbanas onde poderá ser aplicado o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, considerando a existência de infra-estrutura e de demanda para utilização, na forma do artigo 5º desta Lei;

II - disposições requeridas pelos artigos 25, 28, 29, 32 e 35 desta Lei;

III - sistema de acompanhamento e controle.

Cabe mencionar que o artigo 25 do EC se refere ao Direito de Preempção; os artigos 28 e 29, à Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC) e de Alteração de Uso; o artigo 32, às Operações Urbanas Consorciadas e o artigo 35, por sua vez, à Transferência do Direito de Construir.

A OODC, por muito tempo conhecida como Solo Criado (princípio sobre o qual se baseia), corresponde ao instrumento urbanístico que permite ao município estabelecer um coeficiente de aproveitamento básico, o qual poderá ser ultrapassado até atingir o coeficiente máximo permitido, mediante concessão onerosa efetivada através do pagamento de contrapartida por parte do beneficiário.

Os objetivos e fundamentos para a aplicação da OODC encontram-se explicitados no artigo 28 do EC, conforme transcrito abaixo:

Artigo 28. O plano diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário.

§ 1º Para os efeitos desta Lei, coeficiente de aproveitamento é a relação entre a área edificável e a área do terreno.

§ 2º O plano diretor poderá fixar coeficiente de aproveitamento básico único para toda a zona urbana ou diferenciado para áreas específicas dentro da zona urbana.

§ 3º O plano diretor definirá os limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes de aproveitamento, considerando a proporcionalidade entre a infraestrutura existente e o aumento de densidade esperado em cada área.

Especialistas e estudiosos do espaço urbano defendem que o coeficiente de aproveitamento básico seja único e igual a 1,0 (um) para toda a cidade. Neste passo, o Ministério das Cidades, através do Conselho das Cidades expediu a Resolução Recomendada nº148, de 7 de junho de 2014:

“Art. 1º: Recomendar a adoção do Coeficiente de Aproveitamento Básico como princípio balizador da política fundiária urbana municipal, a ser utilizado por todos os municípios até 2015.

Art. 2º Definir que o Coeficiente de Aproveitamento Básico deverá ser unitário (um) e único para toda a zona urbana.

Parágrafo único – Poderão ser adotados, em função do interesse público local, coeficientes de aproveitamento menores do que 1 (um) para áreas de proteção ambiental ou patrimônio cultural.

Art. 3º A possibilidade do exercício de direitos de construir adicionais aos definidos pelo Coeficiente de Aproveitamento Básico deve estar subordinada ao interesse público.

§ 1º - Somente as áreas adequadamente servidas de infraestrutura, e por isso capazes de receber maior adensamento, poderão ser passíveis da atribuição de direitos construtivos adicionais àquele definido pelo Coeficiente de Aproveitamento Básico.

§ 2º - Os limites máximos de aproveitamento dos terrenos urbanos devem levar em consideração, além da capacidade de infraestrutura, o impacto de vizinhança, o impacto ambiental e o modelo de desenvolvimento urbano local.

§ 3º - A outorga do direito de construir acima do Coeficiente de Aproveitamento Básico deverá estar sujeita ao pagamento de contrapartidas que restituam à coletividade a valorização diferenciada recebida pelos beneficiários.

§ 4º - Na produção de habitação de interesse social, a autorização para construir acima do coeficiente único de aproveitamento básico não deve resultar em cobranças financeiras adicionais.

§ 5º - O exercício dos direitos de construir adicionais, definidos além do Coeficiente de Aproveitamento Básico, ainda que previsto em lei, devem ser expressamente autorizados pela autoridade municipal responsável pelo licenciamento de empreendimentos, ouvido o respectivo Conselho Municipal, tendo em vista o impacto local causado pelo aumento da densidade construtiva.

Art. 4º - Os recursos provenientes da cobrança do direito de construir acima do coeficiente único de aproveitamento básico devem ser destinados à promoção de habitação de interesse social, envolvendo, entre outros aspectos, a regularização fundiária plena e a provisão de moradia digna.

Um dos principais argumentos desses especialistas e estudiosos do espaço urbano reside no fato de que coeficientes básicos muito diferenciados entre si originam valorizações distintas de porções do território urbano, o que pode gerar fenômenos urbanos indesejáveis, como elitização de algumas áreas e até mesmo o processo de gentrificação (expulsão da população antigamente residente em uma determinada região da cidade, com sua substituição por outra população de maior poder aquisitivo). Portanto, caso sejam adotados coeficientes básicos diferenciados, faz-se necessário que estes sejam semelhantes entre si.

Ainda, de acordo com o § 3º do artigo 28 do EC, a definição do coeficiente de aproveitamento máximo permitido deve considerar a proporcionalidade entre a infraestrutura existente e o aumento de densidade esperado para cada área, não devendo submeter-se às pressões do mercado imobiliário, nem transformar a OODC em um instrumento com caráter predominantemente arrecadatório, desvinculado da infraestrutura urbana. Este instrumento urbanístico requer planejamento, pautado em um diagnóstico da realidade local, fator reconhecido por todas as análises sobre o tema, com o objetivo de assegurar a sua adequada aplicabilidade e funcionamento.

A OODC e os demais instrumentos previstos pelo EC precisam ser entendidos como um sistema interligado e operado em conjunto, com utilizações adequadas às situações a serem enfrentadas a nível local.

A OODC consta no atual PD de Campo Grande (Capítulo IV, artigos 21 e 23), contudo, apresenta vários pontos de conflito em relação às diretrizes gerais do EC, os quais prejudicam a sua efetiva aplicabilidade como instrumento voltado à gestão social da valorização da terra. A revisão do PD de Campo Grande, em curso atualmente, é o momento propício para a discussão e correção desses pontos de conflito.

Em 06/03/2008, voto do Ministro Eros Grau (STF) sobre o tema estabeleceu:

“Solo criado é o solo artificialmente criado pelo homem (sobre ou sob o solo natural), resultado da construção praticada em volume superior ao permitido nos limites de um coeficiente único de aproveitamento. (...) Não há, na hipótese, obrigação. Não se trata de tributo. Não se trata de imposto. Faculdade atribuível ao proprietário de imóvel, mercê da qual se lhe permite o exercício do direito de construir acima do coeficiente único de aproveitamento adotado em determinada área, desde que satisfeita prestação de dar que consubstancia ônus. Onde não há obrigação não pode haver tributo. Distinção entre ônus, dever e obrigação e entre ato devido e ato necessário. (...) Instrumento próprio à política de desenvolvimento urbano, cuja execução incumbe ao Poder Público municipal, nos termos do disposto no artigo 182 da Constituição do Brasil. Instrumento voltado à correção de distorções que o crescimento urbano desordenado acarreta, à promoção do pleno desenvolvimento das funções da cidade e a dar concreção ao princípio da função social da propriedade (...).” (RE 387.047, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 6-3-08, DJE de 2-5-08)

A literatura urbanística leciona que a regulamentação da OODC objetiva, em linhas gerais, retirar expectativas do jogo imobiliário e, de modo específico, regular o mercado de terras urbanas e obter recursos para o financiamento de infraestrutura e equipamentos urbanos em áreas desassistidas.

Sem a OODC, a valorização resultante de qualquer aumento do potencial construtivo em uma determinada área da cidade é apropriada pelo dono do terreno durante sua comercialização, embora essa valorização seja decorrente de um potencial construtivo atribuído pela legislação, ou seja, pela ação regulatória do poder público ao ordenar a ocupação do seu próprio território urbano.

 Andréia Cristina Peres da Silva – Promotora de Justiça

Jean Claud Borges Maciel Pinheiro – Analista/Arquiteto e Urbanista

Imagem: Prefeitura Municipal de Campo Grande/MS - Internet