O Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul se manifesta em relação às recentes denúncias de torturas sofridas por adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação na Unei Dom Bosco, em Campo Grande.

A Promotora de Justiça Vera Aparecida Cardoso Bogalho Frost Vieira, titular da 28ª Promotoria de Justiça da Infância e Juventude, que atua desde outubro de 2001, relata que sua atribuição é fiscalizar as Uneis (Unidades Educacionais de Internação) e Semiliberdade da comarca de Campo Grande (MS), sendo que são encaminhados relatórios para a Corregedoria-Geral do MPMS e para o Conselho Nacional do Ministério Público. Segundo a Promotora de Justiça, nesses relatórios, ao final são pontuadas todas as irregularidades encontradas durante as visitações e aponta dados referentes às denúncias de torturas no âmbito das Uneis da capital.

De 12 a 23 de setembro de 2016, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), órgão federal criado em 2015 e que tem como função a prevenção e o combate à tortura a partir de visitas regulares a locais de privação de liberdade e da emissão de recomendações a órgãos competentes, realizou inspeção nas Unidades do Sistema Prisional e do Sistema Socioeducativo no Estado e visitou todos os setores da Unidade Educacional de Internação Dom Bosco, e vários adolescentes internados, à época, foram entrevistados, assim como os profissionais do local, equipe técnica e a direção.

Na ocasião, o Mecanismo Nacional visitou a Unei Dom Bosco porque já tinha a informação de que na Unidade cometiam práticas de torturas psicológicas e físicas. A Promotora de Justiça ressalta que em inúmeros casos ocorridos na Unei Dom Bosco há comprovação da materialidade desses crimes praticados por alguns agentes e também há provas suficientes das autorias. De acordo com relatório do Mecanismo, com quase 400 páginas, a tortura é uma prática recorrente e disseminada na Unei Dom Bosco. Os internos na época relataram aos profissionais do Mecanismo que ameaças e agressões físicas e psicológicas eram constantes “variando os métodos sejam nas agressões físicas diretas até na privação do saneamento básico”. Na época, o relatório ressaltou a grande quantidade de pedaços de paus conhecidos como “chicos” de madeira maciça e pesados, de todos os tamanhos presentes na Unidade que seriam utilizados nas agressões as quais eram frequentes. Conforme ainda o relatório, a equipe do Mecanismo encontrou na sala de alimentação dos agentes uma televisão e abaixo dezenas de pedaços de paus sendo que um deles havia a descrição de “sócio educador”, demonstrando a existência de tortura física e psicológica na Unidade.

A Promotora relata que essa prática já era de conhecimento e combate diário do Ministério Público. Relata que teve em 2015 e 2016 dois casos de torturas na Unei Provisória Masculina Novo Caminho onde os adolescentes ficam internados provisoriamente por até 45 dias. Um dos processos está sub judice, sendo apurado em uma das Varas Criminais Residuais desta Comarca. Para ela, a Unidade mais emblemática é a Unei Dom Bosco que hoje está com quase 84 adolescentes.

Dispõe ainda que alguns agentes de medidas socioeducativas são acusados, pelos adolescentes internados e seus genitores, como autores de torturas, e o modo de operar consta no relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.

De acordo com a Promotora, quando o Mecanismo esteve no Estado, eles ouviram todos os adolescentes, psicólogos e assistentes sociais com uma equipe multidisciplinar e os agentes não tiveram acesso. Os adolescentes falaram de uma forma voluntária como os agentes agem, inclusive que eles frequentemente eram encaminhados para o CR (Centro de Reflexão) ou Centro de Triagem, que são três alojamentos separados dos outros pavilhões, que é o A, B, C e D.

A Promotora de Justiça relata ainda que em 2016 após dois meses da vinda do Mecanismo, ocorreu um fato grave de tortura, que culminou na instauração de um procedimento preparatório e foi convertido em Inquérito Civil para apurar os fatos nos termos do artigo 191 e seguintes do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Ela ingressou com Ação Cível junto à Vara da Infância, Juventude e Idoso, pedindo, na ocasião, o afastamento provisório do então Diretor da Unidade Dom Bosco em razão de omissão, e do Chefe de Disciplina por práticas de torturas.  Na época, a Magistrada concedeu a liminar e depois de um ano o Tribunal de Justiça do Estado revogou a liminar.

Na avaliação da Promotora de Justiça, esse processo foi muito grave, com elementos de provas fortes e contundentes e teve o respaldado do Mecanismo, que comprovou a prática de tortura na Unei Dom Bosco. A Ação tramitou junto à Vara da Infância, Juventude e Idoso e, contrariando a pretensão do Ministério Público e todos os elementos de provas que foram trazidos para os autos, foi julgada improcedente. Dessa decisão, o Ministério Público Estadual interpôs Recurso de Apelação ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul.

A Promotora de Justiça relata que, com relação à ação supramencionada, todos os adolescentes foram ouvidos com exceção da vítima, que evadiu do local porque estava sendo revitimizada. Essa vítima, no final de 2017, foi encontrada no Paraná, contudo, por omissão, pois não foi feita a sua transferência, o Delegado a liberou. Hoje, a vítima se encontra na Unei Dom Bosco, sofreu nova revitimização, e está internado há quatro meses.

Em razão de novos fatos criminosos, envolvendo a mesma vítima, no interior da Unei Dom Bosco, ela foi ouvida na 28ª Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude, na semana passada, apresentando lesões. Sobre este caso, a Promotora de Justiça disse que já está tomando várias providências.

No último semestre deste ano de 2018, foram denunciados junto à 28ª Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude desta Comarca 03 (três) novos casos de torturas na Unei Dom Bosco, todos em investigação pelo Ministério Público.

Para a Promotora de Justiça, a situação da Unei Dom Bosco é crítica, e nas oitivas os adolescentes relatam que são ameaçados pelos agentes, os quais os instruem para que “não falem nada para a Promotora”, “não relatem nada ao Ministério Público, porque senão vocês vão beijar o chão da Unidade”. Ela reforça que assim como é muito intransigente na hora de pedir internação, ela também é intransigente em garantir que esses adolescentes tenham a integridade física e psicológica preservada em qualquer Unei. Disse que incube ao Ministério Público preservar os direitos dos adolescentes que estão em cumprimento das medidas socioeducativas de internação e semiliberdade.

A Promotora salienta que infelizmente com decisões do judiciário como a que foi julgada improcedente, com tantos elementos de provas, e que não foram reconhecidos, há uma sensação de impunidade.

Por mais que o Ministério Público faça e ingresse em juízo com as ações, a certeza da impunidade é grande, porque alguns agentes de medidas socioeducativas continuam com as mesmas práticas ilegais, mormente na Unei Dom Bosco.

Quando da visita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura no Estado de Mato Grosso do Sul, no relatório houve sugestão de criação do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, o que não foi consolidado até o presente momento, infelizmente.

A situação da Unei Dom Bosco é muito crítica. O sistema socioeducativo está em desconformidade com a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e com o SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo).

Há necessidade urgente de parcerias efetivas para o combate dessas horrendas práticas denominadas “ torturas “ no interior das Unidades de Internação.  

Texto: Ana Paula Leite e Waléria Leite/jornalistas Assecom MPMS

Foto: Diário Digital