Em data recente, mais precisamente no dia 31 de outubro de 2023, entrou em vigor a Lei nº 14.713/23, que trata da proibição da guarda compartilhada quando houver indícios da existência de violência doméstica ou familiar. A norma é oriunda do Projeto de Lei do Senado nº 2.491/2019, aprovado pela Câmara no mês de agosto.

O impacto inicial no Direito de Família é bastante significativo, em especial na guarda compartilhada, na medida em que, ao mesmo tempo, amplia o rol de proteção de crianças e adolescentes em risco de violência doméstica e familiar, e reforça a finalidade essencial da própria Lei Maria da Penha, uma vez que traz para o Direito de Família a possibilidade de se discutir violência doméstica e familiar em um momento importante do processo, que é logo no seu início, quando da audiência de mediação ou conciliação, perante o Magistrado e o Ministério Público.

Se antes a violência doméstica era tratada basicamente junto às Varas Judiciais próprias (Varas de Violência Doméstica e Familiar), agora sua discussão tem reflexos direto perante as Varas de Família.

Da leitura no novo texto legal, é possível claramente extrair que a ideia central é a ampliação da discussão do tema “violência doméstica”, que agora é trazido para o ambiente do Direito de Família, com consequências diretas na guarda dos filhos menores.

Para além das reflexões teóricas, a nova legislação traz evidências de que sua ocorrência se deve, também, a questões práticas relacionadas à guarda compartilhada e à existência de violência, constatadas primordialmente durante a realização das audiências junto às Varas de Família país afora.

É primordial interpretar o art. 1.584, § 2º, do Código Civil, conforme a redação dada pela nova lei, de forma que a proteção contra a violência diga respeito a qualquer uma das pessoas envolvidas na questão familiar posta em juízo, inclusive terceiros, como regra de hermenêutica, de forma a ampliar o alcance da lei, de maneira prática, efetiva e até mesmo pedagógica, uma vez que tende a demonstrar que violência familiar não se mostra minimamente razoável dentro de um ambiente de proteção aos filhos menores, mormente no momento difícil que é a dissolução da sociedade conjugal.

Com efeito, ao tratarmos do tema “violência doméstica e familiar”, é possível imaginar, em um primeiro momento, que estamos falando da “tradicional” violência do homem contra a mulher. Contudo, a legislação em comento traz uma visão mais amplificada, pois alcança todo tipo de violência em se tratando de ambiente familiar.

Assim, a interpretação do dispositivo deve abranger a violência do marido contra a esposa, da esposa contra o marido, do marido e/ou da esposa contra os filhos, e até mesmo de terceiros (avós, tios, sobrinhos, irmãos etc.) que façam parte daquele ambiente familiar que foi trazido a juízo.

Dessa forma, o alcance da norma em relação aos terceiros é de suma importância durante um processo de divórcio, a fim de que se identifique, após o fim da convivência sob o mesmo teto, a existência de parentes residindo junto às partes da relação, inclusive por conta da própria dissolução do casamento, como é o caso de avós, irmãos etc., que recebam os divorciados em suas residências ou ainda que passem a residir nas residências destes, como forma de “ajuda”, até que as partes se reestruturem novamente. Nesses casos, é comum verificarmos em audiência que existe conflito entre o pai ou a mãe divorciados com seus próprios genitores, ou ainda com um parente próximo.

A título de exemplo, recentemente, durante um processo de divórcio, em audiência de conciliação e instrução, quando da tentativa de acordo pela guarda dos filhos, restou demonstrado que a genitora não poderia ter a guarda compartilhada, porque um dos motivos do próprio divórcio teria sido o cometimento de abuso pelo irmão da genitora contra uma das filhas menores desta. Restou amplamente demonstrado durante a audiência, pelos depoimentos e prova testemunhal colhidos, que o irmão abusador iria residir com sua irmã, mãe da filha abusada.

Por tal razão, foi negada a guarda compartilhada à genitora ante o risco que haveria quanto aos filhos, que iriam conviver com o seu próprio algoz. Eis a importância da capacidade protetiva da nova lei, que mais uma vez trouxe a lume o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.

O novo instituto traz mais uma causa impeditiva da regra da guarda compartilhada, reafirmando que a autoridade parental deve se revestir da necessária capacidade protetiva e responsabilidade, a fim de que se legitime o exercício da guarda, mormente a compartilhada, em um ambiente favorável ao cuidado e à proteção dos filhos menores.

Vale destacar, por fim, que a Lei nº 14.713/23 trouxe uma importante inovação de cunho processual, uma vez que permitiu a discussão do tema “violência doméstica e familiar” logo no início do processo, evitando os dissabores de se ter conhecimento do assunto apenas durante a instrução processual, quando o transcurso do tempo é significativo, por conta das pautas judiciais abarrotadas. A abordagem inicial do tema é primordial, porquanto dita não somente a marcha processual, como também traz o assunto a debate com as providências que se fizerem necessárias em momento mais adequado e oportuno, em prol dos interesses dos filhos menores.

 

Kristiam Gomes Simões – 2º Promotor de Justiça de Campo Grande

Imagem: ASSECOM